quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Finanças, take 2


Finanças, take 2

by Daniel Blaufuks on Monday, 8 October 2012
 
 
(o senhor da repartição, que não queria sequer aceitar receber a carta, disse-me que não valia de nada e que tinhamos o país que merecemos. ao que eu lhe disse que não, que temos sim o país que fazemos, ele e eu...)


Serviço de Financas 8
Rua Centro Cultural, 12
1749-065 Lisboa



Lisboa, 2 de Outubro de 2012


Exmos. Snrs.,

Durante os últimos vinte e cinco anos tenho trabalhado como artista plástico, vendendo obras, fazendo exposições, realizando filmes e cenografias, etc.
Nestes anos paguei sempre os impostos devidos, entreguei as declarações atempadamente e fui inspeccionado pelos vossos serviços várias vezes.

O meu nome é conhecido no meio e representei o país em algumas importantes exposições no estrangeiro. O meu trabalho faz, inclusive, parte do programa oficial do ensino escolar, é discutido em várias universidades e foi objecto de estudo em teses de mestrado e doutoramento, inclusive no estrangeiro. Sem falsas modéstias, sou um dos muitos artistas importantes no panorama nacional e talvez não só. Mas também não deveria ser esse factor a fazer qualquer diferença.

E, no entanto, todos os anos recebo cartas das Finanças a perguntar-me o que eu faço. Tal como este ano, em que me pedem mais uma vez, através de carta registada GI-826378, para provar que os meus rendimentos são de propriedade intelectual, por exemplo, através de contratos. Mas, como já expliquei nas minhas inúmeras visitas à repartição, não existem contratos deste tipo. Eu sou, como muitos outros, o verdadeiro recibo verde, os que não são contratados, os que só tem trabalho de vez em quando, devido à natureza das suas profissões. E que, quando fazem exposições talvez vendam, talvez não. E não há contratos num país em que, absurdo, os recibos (verdes) são passados antes de se receber, inclusive ao Estado, esse grande exemplo de cidadania. Em países mais civilizados chama-se, ao nosso caso, intermitentes, e dá-se-lhes o devido apoio, em vez de os fustigar continuamente. Um dos meus filmes passou já este ano em sessão solene na Assembleia da República. Para o ano podem-me exigir o respectivo contrato, que, claro, não existe. Mas tratou-se, sem qualquer dúvida, de divulgação pedagógica para todos aqueles deputados presentes, como aliás previsto no código de propriedade intelectual.

Ofende-me (mais uma vez) como cidadão e artista neste difícil país, que ponham em causa a natureza do meu trabalho (ainda por cima público) para galerias de arte reconhecidas como a Galeria Carlos Carvalho ou Vera Cortês, para instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian, o Teatro Nacional de São João ou o Centro Cultural de Belém, para associações culturais como a Cooperativa de Curtas Metragens em Vila do Conde, para a editora dos meus livros Tinta-da-China, etc.
A funcionária da repartição disse que o facto desta gente toda me passar a devida declaração de rendimentos ao fim do ano, não prova que o que que faço é de facto o que eu faço. Não, não prova nada, aliás, esse é um dos grandes problemas das Finanças e do Estado deste país. É achar que nós todos estamos a mentir conjuntamente e contra todas as expectativas. Pensar que o cidadão e contribuinte é um mentiroso à partida e que consegue o apoio de todas estas entidades na sua malícia. O problema desta forma de pensar, é que, na realidade e a médio prazo, nos transforma a todos, artistas, taxistas, dentistas, exactamente nisso. Cada hora injusta que passamos nas repartições será cobrada com a satisfação de uma fuga aos impostos, o que só nos levará a todos, para um país ainda mais injusto e corrompido. E, de qualquer forma, se somos todos uns mentirosos, para que servem os contratos?

O código diz o seguinte:

Artigo 58.º
Propriedade intelectual

1 - Os rendimentos provenientes da propriedade literária, artística e científica, considerando-se também como tal os rendimentos provenientes da alienação de obras de arte de exemplar único e os rendimentos provenientes das obras de divulgação pedagógica e científica, quando auferidos por autores residentes em território português, desde que sejam os titulares originários, são considerados no englobamento, para efeitos de IRS, apenas por 50 % do seu valor, líquido de outros benefícios.
2 - Excluem-se do disposto no número anterior os rendimentos provenientes de obras escritas sem carácter literário, artístico ou científico, obras de arquitectura e obras publicitárias.
3 - A importância a excluir do englobamento nos termos do n.º 1 não pode exceder (euro) 20 000.

Não fala nem em contratos nem em provas, para além das óbvias.
Bastaria consultar a internet para perceber o que faço. Se preferirem, levo-lhes uma pilha de catálogos e livros, programas e folhetos. Tudo menos contratos, porque eles não existem. Apesar de os senhores funcionários nas repartições não acreditarem que não existem. Mas também o que é que os senhores sabem dos artistas, escritores, músicos deste país?
Estou cansado de produzir cultura num país, cujo Estado, em vez de nos apoiar, apenas nos dificulta mais e mais os passos. Pedir este tipo de prova, mais uma prova, é esgotar ainda mais a paciência de todos nós, que trabalhamos com sérias dificuldades para que exista alguma coisa de valor cultural em Portugal.

Tenho feito exposições em vários sítios do mundo, quase sempre sem qualquer apoio de qualquer instituição portuguesa. Se insistirem em duvidar da natureza intelectual, cultural e criativa do meu trabalho, deixarei imediatamente de me considerar um artista português, deixarei de aceitar qualquer convite para representar o país, deixarei de apresentar como trabalhos portugueses as minhas fotografias e filmes,
quando apresentadas no estrangeiro, e deixarei futuramente de pagar impostos neste pais. É bem mais simples do que possam pensar.
Não deixarei de aconselhar todos os meus colegas artistas a fazerem o mesmo.

E, entretanto, deixo-vos o convite para irem ver a minha exposição UTZ, actualmente na Agência Vera Cortês, ou os meus livros na exposição TAREFAS INFINITAS na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Talvez vos sirva para alguma coisa e não, não estou a falar em números.

Aguardo assim as V/ notícias.

Com os melhores cumprimentos
Daniel Blaufuks

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